A "FERIDINHA" E A CAUTERIZAÇÃO
O vocabulário médico-científico, em muitas ocasiões, ergue uma barreira na comunicação entre o ginecologista e a paciente. Palavras como hipomenorréia e dispareunia - que fazem parte do jargão médico cotidiano - precisam ser traduzidas para a linguagem leiga para que a mulher entenda que estamos nos referindo, respectivamente, a um fluxo menstrual de pequeno volume e à dor durante as relações sexuais. Por vezes, em benefício dessa comunicação, até abrimos mão da exatidão científica. É o caso da expressão “feridinha no colo do útero”, diagnóstico que transmitido à paciente peca pela extrema simplicidade, suscitando mais dúvidas do que a tranqüilidade almejada. Quando, então, dizemos que a tal “feridinha” pode ser tratada por meio de uma cauterização, o medo do desconhecido soma-se às dúvidas anteriores, obrigando-nos a dar uma explicação mais detalhada sobre o diagnóstico e o procedimento terapêutico proposto.
As três perguntas mais ouvidas pelos ginecologistas, nessas circunstâncias, são: “Como foi que eu peguei essa ferida?”; “Por que tenho que fazer uma cauterização?” e "Isso dói?"
A expressão “feridinha no colo do útero” é uma tradução grosseira de uma entidade clínica conhecida como ectopia cervical, ou ectrópio, resultante da eversão do epitélio endocervical. Trocando em miúdos...
O colo do útero é, basicamente, um canal situado no fundo da vagina. A parte externa do colo, que fica em contato com o ambiente vaginal, chamada ectocérvice, é coberta por um epitélio espesso que tem várias camadas de células; sendo portanto, mais resistente às eventuais agressões próprias do local, como acidez, agentes infecciosos (vírus e bactérias) e traumas mecânicos causados pelo coito. A parte interna desse canal, que se prolonga até a cavidade uterina, é muito mais delicada, sendo revestida por um epitélio fino e delicado que possui uma única camada de células. Por mecanismos hormonais (estrogênios), inerentes ao organismo feminino, o revestimento interno do canal – sensível e frágil - passa a se localizar na porção externa do colo (eversão), o que o torna mais suscetível a sangramentos durante as relações sexuais, a infecções de diversas etiologias (clamídia, HPV), além de, uma vez inflamado, produzir uma quantidade excessiva de muco, que se exterioriza sob a forma de um corrimento espesso, pegajoso e amarelado (cervicite).
A figura ilustra a influência hormonal na gênese da ectopia cervical.
Em outras palavras, a mulher não “pega a ferida”. Esta é uma conseqüência da influência hormonal durante a idade fértil. Essa influência dos estrogênios sobre o colo uterino é observada, inclusive, em meninas recém-nascidas, que podem apresentar ectopia, temporariamente, por causa dos hormônios placentários.
Os desenhos, acima, podem ser comparados com imagens fotográficas ampliadasdo Atlas do Dr. Saloney Nazeer - Geneva WHO Collaborating Center in Human.
COLO NORMAL (foto) -
COLO COM ECTOPIA (foto) Por que a cauterização é usada como tratamento para a eversão do epitélio endocervical?
A Natureza reconhece que o ambiente vaginal não é o mais adequado para aquele epitélio que saiu do canal cervical e ficou exposto aos agentes agressores. Diante disso, ela sabiamente promove a substituição daquele epitélio mais frágil por outro mais resistente, por meio de um processo que, entre os médicos, é conhecido pelo nome de metapasia. Em outras palavras, se não fizermos nada, a Natureza se encarregará de "tratar" a ectopia. O processo, porém, é muito lento e irregular, podendo levar anos para se completar.
Entre as razões pelas quais se cauteriza a ectopia, estão os desagradáveis sintomas por ela provocados (sangramentos de contato, corrimento), a maior resistência do novo epitélio em relação às infecções (DSTs) e uma menor vulnerabilidade - isso é discutível - em relação ao câncer do colo.
A cauterização, como o nome indica, é uma queimadura, de intensidade e profundidade controladas, que tem por objetivo destruir - completamente, e em questão de segundos - o epitélio evertido, aproveitando a capacidade regeneradora da Natureza. Durante o processo de cicatrização, que dura de quatro a seis semanas, há uma completa substituição daquele tecido frágil por outro mais resistente.
A cauterização do colo é realizada no consultório - preferencialmente, nos primeiros dias que se seguem ao término da menstruação - e não requer qualquer tipo de anestesia, pois é praticamente indolor, apesar de algumas pacientes queixarem-se de uma cólica leve durante o procedimento. Agentes químicos ou físicos podem ser utilizados para cauterizar. Entre estes, podemos citar: as substâncias cáusticas (ácidos), o frio extremo (- 60ºC = criocauteri- zação), o calor, a corrente elétrica, o ultra-som e os raios laser.
Durante o período de cicatrização, por motivos óbvios, a abstinência sexual deve ser total. Nesse intervalo, recomenda-se a aplicação de cremes vaginais para acelerar o processo de regeneração. Entre o sétimo e o décimo dia após o procedimento pode ocorrer (não obrigatoriamente) um pequeno sangramento que, se se intensificar merecerá uma inspeção por parte do médico assistente.
Como a influência hormonal sobre o colo é constante durante a idade fértil da mulher (inclusive durante a gravidez), uma nova porção do canal pode se exteriorizar, decorridos alguns anos da primeira cauterização. Nesse caso, uma segunda cauterização será necessária.
A comunicação é o principal instrumento da relação entre o ginecologista e sua paciente. Todo ato médico - desde a simples prescrição de um medicamento até a indicação de uma cirurgia complexa - deve ser acompanhado das respectivas explicações. Mais do que um direito da paciente, trata-se de um dever profissional.
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